Endometriose e Infertilidade

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Endometriose é uma doença crônica e frequente nas mulheres em idade fértil. É definida pela presença de tecido semelhante ao do endométrio em região ectópica, ou seja, externa à cavidade uterina, levando a uma reação inflamatória intermitente e geralmente progressiva. É uma condição benigna, em que o tecido ectópico é funcionante e responsivo à ação hormonal. Embora as pacientes possam ser assintomáticas, a maioria tipicamente apresenta dor pélvica, infertilidade ou massa anexial.

Apesar do grande impacto social e econômico, a endometriose permanece mal diagnosticada, mal compreendida e com tratamentos de baixa eficácia.

QUADRO CLÍNICO
A doença exibe um amplo espectro de manifestações clínicas, propensas à progressão e recorrência. Os principais sintomas relacionados à endometriose são dismenorreia, dor pélvica crônica acíclica, infertilidade, dispareunia de profundidade, alterações urinárias e intestinais cíclicas (tais como dor ou sangramento no período menstrual, de acordo com o local de acometimento).
Pode envolver diversas estruturas anatômicas, incluindo os ovários, o peritônio, os ligamentos uterossacrais, o septo retovaginal, o reto, o cólon sigmoide, o íleo terminal, o apêndice cecal, a bexiga e os ureteres (Figura 1). Em localizações mais distantes ao útero como a pele, ou ainda, como o pulmão e a mucosa nasal os implantes também podem ser encontrados.
DIAGNÓSTICO
A suspeita diagnóstica ocorre pelo quadro clínico de algia pélvica e/ou infertilidade, além de possíveis alterações em exames de imagem. O diagnóstico definitivo ocorre através do exame histológico das lesões retiradas durante a laparoscopia, o que é considerado como padrão ouro para o diagnóstico da doença.
         Figura 1 – Possíveis locais de acometimento da endometriose
 Fonte: modificado de Coleção Netter de Ilustrações Médicas, 2015
O sintoma mais prevalente é a dismenorreia, sendo que em um estudo brasileiro este acometimento foi encontrado em 62% das pacientes com endometriose peritoneal.  Nesta mesma pesquisa a prevalência de dor pélvica crônica foi de 57%, dispareunia de profundidade de 55%, alterações intestinais cíclicas de 48%, infertilidade em 40% e dismenorreia incapacitante em 28% das pacientes.
No exame físico deve-se realizar o exame especular, com a inspeção e a procura por implante vaginal. O toque vaginal bimanual poderá denunciar tumorações anexiais, a falta de mobilidade uterina e sua retroversão, nodulações endurecidas e dolorosas no fórnice posterior ou ligamentos uterossacrais. O toque retal poderá ser realizado quando houver suspeita de acometimento intestinal por infiltração ou massa comprimindo o retosigmóide. Importante ressaltar que o diagnóstico pode ainda ser suspeitado, mesmo que o exame físico seja normal, se houver quadro clínico sugestivo.
Vários métodos de imagem podem ser úteis na avaliação da endometriose ovariana e profunda, mas nenhum deles tem valor prático na detecção da endometriose superficial. A ultrassonografia transvaginal e a ressonância nuclear magnética são exames de imagem que podem contribuir para o diagnóstico, especialmente na presença de lesões ovarianas. A ultrassonografia transvaginal apresenta excelente sensibilidade e especificidade para o diagnóstico dos endometriomas ovarianos (Guerriero et al., em 1998, encontraram sensibilidade de 97% e especificidade de 90%). Já a ressonância permite uma visão panorâmica com possibilidade de reconstruções multiplanares e tridimensionais, sendo um excelente método para visualização das estruturas pélvicas, assim como o mapeamento das lesões, caracterização tecidual da endometriose profunda, identificando o paciente com doença multifocal e detectando lesões em localizações extrapélvicas.
A endometriose tem três apresentações distintas sob o aspecto clínico, anatomopatológico e de imagem: superficial, ovariana e profunda. A endometriose é definida histologicamente como profunda, quando a infiltração da estrutura anatômica é maior do que 5mm. Como é um processo infiltrativo, em continuidade com o tecido fibromuscular, pode ter comportamento agressivo, ocasionando estenose ureteral ou intestinal, além de envolvimento de nervos da pelve. Estima-se que 25 a 30% das pacientes acometidas pela doença tenham esta forma de apresentação, o que corresponde a cerca de 1% das mulheres em idade reprodutiva.
Na suspeita de acometimento de doença infiltrativa profunda, a ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal, se realizada por profissional treinado, poderá dar grande acurácia para a doença intestinal, definindo com maior precisão a camada de acometimento e distância da borda anal, sendo para isto superior à ressonância magnética. Tais informações são fundamentais para o planejamento cirúrgico.
A endometriose é classificada de acordo com as normas da American Society for Reproductive Medicine como mínima, leve, moderada e grave, através da avaliação laparoscópica. Essa classificação baseia-se em um sistema de pontuação que leva em consideração a profundidade de invasão da lesão, sua extensão, a bilateralidade e envolvimento dos ovários, assim como a densidade das aderências e comprometimento do fundo de saco de Douglas. Limitações importantes são observadas nesta classificação por apresentar pobre correlação com as taxas de gestação. Outros sistemas de classificação foram propostos, como o sistema Enzian e o EFI (Endometriosis Fertility Index), porém ainda possuem pequena aceitação mundial. Apesar de criticada, a classificação da ASRM permanece como a mais utilizada.
O CA-125 (Cancer antigen 125) sérico tem sido proposto como um candidato a biomarcador para a endometriose. É um bem estabelecido marcador para câncer ovariano de células epiteliais, e é derivado do epitélio celômico que está presente no endométrio, tuba uterina, ovário e peritônio. O CA-125 está elevado na endometriose em decorrência da estimulação do epitélio celômico e é o marcador diagnóstico não invasivo mais investigado.  O caráter inespecífico deste marcador tem causado importante confusão aos médicos e em suas pacientes. Hirsch e cols, em uma metanálise de 2016, com 3626 participantes concluíram que em mulheres sintomáticas, o CA-125 ≥ 30 unidades/ml, é altamente específico para o diagnóstico de endometriose (especificidade de 92,7%). Já o valor < 30 u/ml não exclui a doença e uma melhor investigação deverá ser realizada.
Trata-se de uma área da ginecologia de grande interesse no meio científico, especialmente porque a etiologia da doença não é clara, assim como o seu comportamento. O padrão ouro para o diagnóstico ocorre através de um ato cirúrgico e por este motivo este diagnóstico é muitas vezes postergado, chegando a um atraso de até 10 anos entre os primeiros sintomas e o diagnóstico, inclusive em países desenvolvidos como Alemanha e Áustria. Além disso, não existe um tratamento curativo, havendo sempre a individualização de cada caso, com a necessidade muitas vezes de se optar por tratar a dor ou a infertilidade em determinado momento, com riscos importantes de sequelas, principalmente se a opção for o tratamento cirúrgico.
EPIDEMOLOGIA
A doença tem uma importância econômica relevante para qualquer sistema de saúde. Em 2016, Soliman et al. em uma revisão sistemática observaram que os custos diretos com a doença partiam de $1.109,00 por paciente por ano no Canada até $12.118,00 por paciente por ano nos EUA. Custos indiretos iam de $3.314,00 por paciente por ano na Áustria até $15.737,00 por paciente por ano nos EUA.
Importante ressaltar que se trata de uma doença com significativa piora na qualidade de vida, e isto reflete diretamente na produtividade destas mulheres, podendo levar a ausências no trabalho, especialmente por episódios álgicos.
A endometriose se apresenta como uma doença de difícil levantamento epidemiológico, perfil impreciso e que necessita de levantamentos disponíveis, para que se tenha uma noção aproximada da sua prevalência na população feminina. Estima-se que afete 10 a 15% das mulheres em idade reprodutiva [55], cerca de 80% das mulheres com dismenorreia e mais de 40% das mulheres inférteis possuem esta enfermidade. Em 2009, Barbosa et al. observaram que curiosamente, 16% de mulheres assintomáticas e férteis, que foram submetidas à videolaparoscopia para laqueadura tubária, possuíam focos de endometriose peritoneais confirmados pelo exame histológico.
Alguns autores tem descrito a endometriose superficial como um fenômeno normal e cíclico na vida das mulheres, e tem indicado que o desenvolvimento e progressão da doença ocorrem somente em algumas mulheres por mudanças da resposta imunológica.
A nuliparidade, a infertilidade, primeira gestação tardia, intervalos prolongados entre as gestações, menarca precoce e menopausa tardia, ou seja, situações de maior exposição aos estrógenos são consideradas fatores de risco para a doença. Em oposição, condições que diminuem a exposição aos estrógenos, como atividade física regular e tabagismo, parecem conferir proteção, mas estes dados são ainda inconsistentes. Alguns estudos relatam um risco de endometriose 3 a 10 vezes maior em parentes de primeiro grau, o que sugere uma etiologia genética da doença.
ETIOLOGIA
Não há consenso sobre a origem da endometriose, mesmo ela tendo sido descoberta há mais de 100 anos.  O mecanismo fundamental deve ocorrer em decorrência de uma falha do mecanismo imune em destruir tecidos ectópicos, associado a uma anormal diferenciação do tecido endometrial que chega ao peritônio. São muitas as teorias propostas, mas nenhuma isoladamente consegue explicar todos os tipos e sítios de implantação. A união destas teorias poderia explicar a etiologia da doença.
Von Recklinghausen (1896) e Russel (1899) propuseram a origem da endometriose a partir das células embrionárias. Esta teoria parte do pressuposto de que em áreas adjacentes aos ductos de Müller possam existir células de origem müllerianas, que quando ativadas por algum mecanismo ainda não elucidado, originariam células semelhantes às do endométrio original e viáveis.
A teoria da menstruação retrógrada de Sampson (1927) (Figura 2) sugere que a migração de células endometriais viáveis através da tuba e subsequente implantação leve à endometriose. No entanto a menstruação retrógrada é quase que um fenômeno universal, já que 90% das mulheres apresentam este fenômeno, como pode ser observado em um trabalho de Halme et al., de 1984. A presença de tecido endometrial viável no fluido peritoneal que é capaz de implantar e se desenvolver e a distribuição anatômica dos implantes corroboram esta teoria.
Figura 2 – John A. Sampson e a teoria da menstruação retrógrada

Fonte: Dastur & Tank, 2010
Na teoria da metaplasia celômica, o tecido endometrial se desenvolve quando células mesoteliais celômicas do peritônio ou da superfície ovariana sofrem metaplasia, influenciadas pelos níveis estrogênicos. Outra teoria postula a circulação e implantação do tecido menstrual ectópico do sistema venoso ou linfático, ou de ambos.
A origem do tecido ectópico tem sido objeto de muita investigação. Estudos propõem elucidar as alterações moleculares, tanto no endométrio tópico quanto no microambiente peritoneal, que favoreçam a formação de lesões endometrióticas.

Possivelmente ambos encontram-se alterados, permitindo adesão, invasão, proliferação e crescimento das lesões (Figura 3).

Figura 3 – Teorias sobre a patogênese da endometriose
Fonte: modificado de Burney & Giudice, 2008
Assim, a suscetibilidade das mulheres portadoras da endometriose depende da interação de fatores imunológicos, ambientais, hormonais e genéticos (Figura 3).
Diversos estudos mostraram a associação entre distúrbios imunológicos, doenças autoimunes e endometriose. Estudos em diferentes populações mostraram uma consistente associação entre endometriose, artrite reumatoide e psoríase. Se considerarmos outras patologias mediadas pelo sistema imunológico, há associações entre endometriose, asma e rinite alérgica.
A endometriose demonstra muitas similaridades com doenças autoimunes como níveis elevados de citocinas, apoptose celular diminuída, danos tissulares e anormalidades das ações das células T e B.
Alguns estudos têm sugerido que a exposição às dioxinas pode causar endometriose. Evidências recentes também sugerem que outras toxinas ambientais, como os ftalatos, bisfenol A e poluentes organoclorados, podem também exercer um papel no desenvolvimento da doença. Porém, os atuais dados são ainda inconsistentes. Este tipo de exposição pode modular a resposta imunológica, dando uma explicação biológica para o potencial efeito na patogênese da endometriose.
Classicamente a endometriose é relacionada a fatores hormonais, e denominada de patologia estrogênio-dependente, mas outros hormônios também podem estar envolvidos na etiopatogenia da doença. Vale ressaltar que polimorfismos destes hormônios ou de seus receptores podem também estar relacionados à infertilidade.
ENDOMETRIOSE E INFERTILIDADE
Há um claro envolvimento da endometriose com a queda da taxa de fecundidade nas mulheres envolvidas. Enquanto a taxa de fecundidade mensal (TFM) no primeiro ano de tentativas para casais normais varia de 20% a 30%, a TFM em casais em que a mulher é portadora de endometriose encontra-se entre 2% e 10% ao mês. Mesmo a endometriose mínima pode estar associada à diminuição da fertilidade.
Os reais mecanismos da relação endometriose e infertilidade não estão totalmente elucidados. Parece haver um comprometimento multifatorial que envolve causas mecânicas, moleculares, genéticas e hormonais.
Numerosos mecanismos podem interferir na fertilidade de mulheres com endometriose (Figura 4) e estes incluem alteração na foliculogênese, levando a uma disfunção ovulatória e piora na qualidade oocitária, interferência no mecanismo de captação e transporte do oócito, exposição a um ambiente hostil com macrófagos, citoquinas e substâncias vasoativas presentes no fluido peritoneal que pode impactar tanto no oócito quanto na progressão e ação dos espermatozóides, disfunção anatômica das tubas uterinas e ovários, bem como deficiência na fase lútea, redução na fertilização, implantação e anormalidades na embriogênese. Fenômenos gestacionais como aborto recorrente ou perdas pré-termos podem também ser observados mais frequentemente em pacientes com endometriose.
Figura 4 – Fatores de redução da fecundidade em mulheres com endometriose
Fonte: modificado de Stilley et al., 2012
MANEJO DA DOENÇA
O tratamento da paciente infértil com endometriose deve levar em consideração se há associação com dor pélvica, a idade da paciente, o status tubário e se há fator masculino associado. Pode-se optar por tratamento cirúrgico ou por técnicas de reprodução assistida de baixa ou alta complexidade. Tratamento medicamentoso como supressão da função ovariana para pacientes com endometriose e desejo reprodutivo mostraram-se ineficazes e não devem ser recomendados antes ou após o tratamento cirúrgico. Apenas o uso de análogo de GnRH mostrou ser benéfico se utilizado antes de uma fertilização in vitro (FIV), por 3 a 6 meses.
O tratamento cirúrgico destas pacientes consiste em remover o tecido endometriótico e lise de aderências, preferencialmente por via laparoscópica, com a intenção de restaurar a anatomia normal. A videolaparoscopia diagnóstica não tem mais espaço como opção terapêutica, já que a cirúrgica mostrou-se muito superior e com semelhante morbidade. O tratamento cirúrgico pode levar a maiores taxas de gestação, tanto nos estágios mais leves de endometriose quanto os mais severos, quando comparados à conduta expectante. Porém estes números não são animadores já que são necessárias 12 videolaparoscopias para cada gestação nas pacientes classificadas como nível I ou II de endometriose.
A presença de endometriomas ovarianos indica doença severa, representando um desafio ao cirurgião e geralmente são marcadores de uma endometriose mais extensa, raramente restrita apenas ao ovário. A abordagem cirúrgica aos endometriomas ovarianos deve objetivar a exérese da cápsula, e não apenas a coagulação da parede ou a drenagem do conteúdo. Desta maneira há uma diminuição da taxa de recorrência e aumento na chance de gravidez. Endometriomas maiores que 3 cm de diâmetro devem ser retirados quando possíveis, levando-se sempre em consideração o evento adverso da diminuição da reserva ovariana que este ato pode levar, com risco de selar o futuro reprodutivo destas pacientes. Em 2016, Mircea et al. observaram que das pacientes submetidas à videolaparoscopia para cistectomia, 40% apresentavam perda de parênquima ovariano normal, que havia sido retirado inadvertidamente, apesar dos cirurgiões serem considerados experientes. Diversos trabalhos também observaram a queda do hormônio anti-mülleriano após a exérese do endometrioma, o que fortalece a hipótese de diminuição da reserva ovariana com o procedimento e reforça a necessidade de cautela e individualização de cada caso, especialmente em grupos de risco para pool oocitário diminuído, como por exemplo, em paciente com mais de 35 anos ou que sofreram uma cirurgia ovariana prévia.
Após a primeira cirurgia para tratar as mulheres endometrióticas com infertilidade, cirurgias adicionais raramente aumentarão a fecundidade, e estas pacientes terão melhores chances se realizarem terapias de reprodução assistida.
ENDOMETRIOSE E TERAPIA DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Estimulação ovariana controlada associada à inseminação intra-uterina, especialmente quando se utiliza gonadotrofinas, podem elevar a taxa de fecundidade mensal das pacientes com endometriose I e II, se comparada à conduta expectante. Os melhores resultados acontecerão nos primeiros seis meses após a realização da cirurgia, com taxa de gravidez por ciclo de 21% nas pacientes com endometriose mínima e 18,9% em pacientes com endometriose leve.
Segundo o último guideline da ESHRE, devemos considerar a FIV em paciente inférteis com endometriose quando a função tubária estiver comprometida, existir fator masculino associado ou houver falhas em técnicas de tratamentos anteriores (cirurgia e/ou baixa complexidade).
Em 2010 a ASRM divulgou seus resultados de transferência embrionária pós-FIV e foi relatado que a taxa global de nascimento por captação em mulheres inférteis varia de 44,6%, naquelas abaixo dos 35 anos de idade, a 14,9% no grupo de 41 a 42 anos de idade. A taxa média por captação em pacientes com endometriose foi de 39,1%.
Harb et al., em sua metanálise de 2013, observaram dados de 27 estudos e 8984 mulheres e foram evidenciados redução de 7% nas taxas de fertilização em pacientes com endometriose I/II quando comparadas com o grupo controle (RR=0,93; IC95% 0,87-0,99; p=0,03). Em pacientes com endometriose III/IV, foram observadas menores taxas de implantação (RR = 0,79, IC95% 0,67-0,93; p=0,006) e de gestação clínica (RR = 0,79, IC95% 0,69-0,91; p=0,0008). Os autores concluíram que a redução nas taxas de gestação clínica (21%) em mulheres com endometriose III/IV submetidas à FIV, significa que o tratamento da endometriose não irá necessariamente restaurar as taxas de gravidez clínica, tornando-as similares àquelas de mulheres sem endometriose.